29 de junho de 2008

A noite

É noite.
Amena, contudo farrapos de algodão cinza negro invadem como um exército o céu, deixando somente espaço para as estrelas abraçarem os pensamentos. A Lua, majestosa através da sua essência cristalina impõe-se num halo circular quase divino, que se alastra através da sua claridade e que ataca tudo, quase sem excepção.
Uma brisa abana os campos de trigo. É um bafo quente e constante, quase sem intensidade.
As sombras na terra são seres volúveis e voláteis, nascem e morrem com o simples murmurar dos ramos das árvores.
Um rio corre pachorrento, ondulante, sibilante, abraçando o luar momentaneamente para instantemente o rejeitar. Algas escorregam na sua superfície dançando ao som das ninfas eloquentes.
Uma estrada de terra batida formulada por entre os ciprestes e o rio é percorrida por um só homem.
Este, de média estatura, veste um hábito monacal coçado, de cor castanha que está somente preso por um cordão. As suas calças esfarrapadas indicam uma jornada dura e os seus sapatos rotos mostram feridas nos pés.
O seu caminhar é lento, pacífico, penoso, quase mecânico.
A sua cara é negrume, coberta que está pelo hábito.
Ao longe clarões.
Matizes coloridos disputam a hierarquia lumínica, revelando-se em estrondos causais entrecortados por música sussurrante.
Um contorno desenha-se em contraste no horizonte. Primeiro revelam-se duas torres sineiras com os seus campanários altivos erguidos como que em sinal de desafio, um atestado do orgulho humano; depois surge uma mole edificada casuisticamente, cuja disparidade se revela na sua altimetria e no desenho das suas cumeeiras.
A luz artificial, amarela e esquiva, flui por entre as paredes mais altas desaparecendo no negrume atmosférico, sendo substituída nos pináculos e nas cumeadas dos telhados pelo abraço furtivo do luar.



Os portões, escancarados, aparecem fantasmagóricos e isolados.
Recortados nas muralhas, gravados a metal, dois guardas tagarelam alegremente, alheados dos seus serviços aduaneiros.
Em frente às portas da povoação abre-se uma rua que parece ter sido escavada na superfície construída, sendo assim irregular.
A luz mortiça dos candeeiros a petróleo abrilhanta espásmica a rua, inundando-a inocentemente de sombras e nuances, incentivando o movimento das bandeirinhas que flutuam, quase por magia, presas por cima das cabeças das pessoas.
A estrada parece ser um rio, qual torrente, ondulada pelos movimentos da turba.
Crianças sorriem embevecidas, outras correm.
Pessoas conversam descomplexadas pelo excesso de alcóol, outras cambaleiam o melhor que podem, arrastando-se pelo meio da multidão; outras ainda, atraídas pela música e pelo barulho ensurdecedor acorrem ao termo da via, para uma praça, onde assistem à actuação de bardos, trovadores, e, a espectáculos dos mais variados géneros, como as barracas dos ciganos e as lutas de galos.
As festividades religiosas convivem de braço dado com o pagão.
Nas velhas janelas inscritas nas rendas das cortinas, estão vultos no escuro interior fiando pacientemente o seu croché como as aranhas que lhes adornam o mundo, esperando somente por um pouco de rebuliço, algo de diferente, para afiarem as suas garras gastas na forma de bocas desdentadas que se abrem na sua beatitude crítica.
Pelo meio da mole humana, os cheiros e as sensações são difíceis de descrever, o calor dos corpos eclipsa as minhas percepções e reduz a pó a minha sensibilidade.
Na praça principal, à porta da igreja, o chão ensanguentado revela um vencedor improvável que olha a mulher barbuda em desafio. O seu bico irrequieto está ainda molhado de vermelho e nas suas penas desenvolve-se um coágulo.
Uma rua estreita e lateral chama-me a atenção. Sinto-me impelido. Apesar de quase morto de cansaço, decido entrar na viela. Ao fim de vinte metros a porta de uma taberna convida-me a entrar com a sua tabuleta minúscula. Diz Circulo Mágico.
Na soleira da porta está espalhado sal e no perímetro do chão encontra-se uma inscrição latina. Um homem velho murmura uma oração ininterrupta.
Algo me leva a entrar, não sei o quê. Atrai-me como a serpente aliciou Eva ao fruto proibido. Não consigo precisar a causa, sei que é algo que me guia e que me revolve o estômago e que me apela ao instinto mais básico do ser humano: a sobrevivência. É uma mão que me empurra e que me puxa com a mesma intensidade, é um conflito que se apodera dos meus músculos sem a minha mente participar. É o que os místicos de outrora chamaria de destino.
Mecanicamente os meus passos sucedem-se.
O velho da porta, olha-me e sorri desdentado, mostrando as suas gengivas salivadas rasgadas numa boca por entre rugas marcadas que parecem ter sido fruto do cinzel de um escultor barroco ainda por nascer.
À parte da estranha frase em latim, o estabelecimento parece ser perfeitamente normal.
As paredes de pedra estão adornadas de barris e caixas.O tecto surge sustentado por pilares e traves de secção rectangular.
Um balcão existe a um canto, perfeitamente camuflado pelo movimento da clientela.
No canto oposto ao balcão, isolada, uma mulher morena, muito bela, está de pé e exibe um sorriso angelical. Ninguém se aproxima, parece que toda a gente sabe que ela lá está, mas ninguém a vê.
Vou até ao balcão e sento-me numa cadeira de pernas altas. O taberneiro pergunta-me o que desejo. Eu respondo:
- Qualquer coisa que me dê força.
Ele sorri e enche uma caneca com um líquido dourado. De uma forma abrutalhada planta o recipiente à minha frente.
Bebo, com um trago curto e pouco confiante.
É um liquido espesso, mas aparentemente suave, tem um leve travo de cevada e queima-me as gengivas. É granulado e parece prender-se na garganta até descer para o estômago. Deixa um sabor amargo na minha boca ao qual reajo com um esgar.
O homem sorri ao se aperceber da minha reacção por debaixo do capote. A luz dos archotes ilumina agora levemente a minha cara por entre as fibras da minha roupa.
Num tom jocoso pergunta-me:
- Amigo, é a primeira vez que bebe cerveja?
Eu minto sem pensar, com medo da vergonha:
- Não. Tenho o estômago vazio há vários dias. Não me caiu nada bem.
Bebo outro trago e mesma amargura apodera-se da minha boca. Mais uma vez um trejeito animal de repúdio se apodera dos meus músculos faciais, e leva-me a pensar se este liquido nojento, com sabor a mijo de cão, é castigo pela minha mentirinha inocente.
Ouço uma voz cavernosa e confiante ao meu lado.
- Bebe tragos maiores. Vá, experimenta.
Sinto-me intimidado por tal demonstração de confiança e respondo sem olhar, um pouco na defensiva:
- Eu sei. Não preciso de instruções para beber cerveja.
Molho mais uma vez os lábios e uma sensação de vómito atinge-me a goela.
Mais uma vez ouço a voz.
- Bebe com confiança, tragos grandes.
Reajo irritado.
-Mas eu conheço-o de algum lado para me dar conselhos sobre como beber a minha cerveja?
Ao que me responde:
- Não. Mas posso afiançar-te que conheci o teu pai, ou pelo menos alguém da tua família... Um tio, quiçá...
Interrompo-o, enervado pela familiaridade presente no seu discurso.
- Impossível! Sou órfão- matraco desafiante. Abandonado à porta de um convento dominicano, onde fui criado.
- Domini Canis... Cão de Deus. Não me parece. Não me pareces grande cão de Deus, quer dizer, mentiste ao estalajadeiro, reages orgulhosamente à ajuda prestada... A continuar assim o Inferno e os seus rios de gemidos não se afiguram distantes.
Sou transparente. Fui invadido. Sinto-me inseguro. A voz conseguiu destrinçar o meu modus operandi até agora. Só pode ser a minha consciência. Castiga-me, pune-me, perdão Senhor.
A voz continua:
- Cão de Deus, não te preocupes, essas faltas são demasiado leves no mundo do teu Deus. Não te eleves ao Purgatório, nem a qualquer outro lado. É só o remorso estúpido de uma culpa auto induzida após o fracasso da socialização. Aposto que não te ensinaram isto no convento.
Curioso, olho para o lado de onde vem esta voz tão confiante que me atravessa e desafia. Conseguiu a minha atenção.
É um homem amarelo, quase cadavérico de tão magro, e bastante alto. Contrastando com a sua pele o cabelo é negro com reflexos azulados e os seus olhos também negros, parecem jóias incrustadas numa base de ouro baço côncava. A sua boca rasgada e grande exibe um sorriso perfeito e paternal.
Ao seu lado o oposto.
Um anão gordo e barbudo com um ar desleixado. Veste uma armadura metálica um pouco desgastada e roupas por de mais coçadas pelo uso.
Resultam num conjunto um pouco ridículo.
O meu capucho, com o movimento, desleixa-se e cai. A minha protecção para o mundo desvanece-se. Perco o meu escudo. Para além dos complexos sociais que desenvolvi instantaneamente com o contacto humano, também a solução física cai por terra com este diálogo. Estou exposto. A minha ideia original de andar incógnito por entre as vivências mundanas para as presenciar sem realmente as participar parece agora um plano absurdo, tão ridículo como as minhas reservas em ser pura e simplesmente humano. A minha superioridade auto incutida desce pela fossa das ideias brilhantes sem aplicação prática e efectiva. Sou só mais um e até me sinto bem com isso.
- Realmente és quem eu pensava, Cão de Deus... és o teu pai, ou melhor, serias ele se ele não estivesse morto.
Sem hesitar, de rajada, pergunto:
- Conheceu o meu pai? Quem era ele? Como era ele? Boa pessoa, espero...
- Cão de Deus... Não te ensinaram lá no teu conventinho a não seres presumido? Consideras-te mesmo uma boa pessoa? Os teus padrões variam muito de um momento para o outro. Quer dizer, até agora remoías-te remorsos por teres sido orgulhoso e mentiroso, e agora já és uma boa pessoa? Quem te vai entender?
Tentando-me explicar balbucio algo que não me sai pela boca.
- Sim, boa pessoa - diz o anão - boa pessoa, sim, sim...
- De facto a melhor pessoa, mas um dia entenderás melhor isto, Cão de Deus.
O velho à porta pára a sua oração.
Um clamor colectivo atravessa a vila e escancara-se na porta da taberna.
Certas pessoas que passam na viela ficam subitamente desfiguradas, as restantes começam num frenesim a correr como se fossem ovelhas atiçadas por lobos, resultado do horror, do choque e, sem dúvida, do medo que esta visão lhes provocou.
Algumas tentam entrar no Circulo mágico, outras agridem frontalmente aquelas que não se transformaram, tentando comê-las vivas.
O velho, à porta, sorri desdentado.
Levanto-me para ver o que se passa, corro até à saída.
Sou empurrado para fora. Tenho medo.
Uma das bestas tenta agarra-me, começo a correr desenfreadamente e esqueço por instantes o cansaço que me corroía o corpo.
Reparo que os meus dois companheiros me ladeiam.
O anão desajeitado corre arfando com a sua armadura a bater-lhe nos queixos.
O homem alto, para meu espanto, flutua a meu lado.
Pergunto:
- O que é isto? Que se passa?
- Cão de Deus, agora não é hora para perguntas, depois explico-te...



Pelas ruas as pessoas tentam escapar, mas a multidão é guiada como um rebanho por predadores a uma emboscada já antecipada.
As crianças pequenas ficam para trás a chorar e são arrebatadas sem sequer o sentir. Num instante vivem, noutro morrem.
Os adultos fogem o melhor que podem, mas o movimento atabalhoado deva a quedas e alguns morrem atropelados e asfixiados por debaixo da torrente humana.
Os velhos morrem de ataque cardíaco e apoplexias devido ao choque e esforço.
O rebanho é desfeito paulatinamente e só alguns se salvam, em especial os bêbedos.
Gritos de terror estilhaçam as janelas, enquanto gemidos de dor se perdem na algazarra.
Com uma eficácia perturbadora as festas são transformadas num festival de carne morta e mastigada, sugada e saboreada.
Quando a última pessoa morre, sucumbindo às garras de um dos animais, a rua parece um matadouro, somente animada pelos candeeiros e pelo movimento ambulatório dos ébrios, que geralmente com as mãos na cabeça vivem o pesadelo que não sabem ainda real.
Não é um cenário agradável.



- Cão de Deus, para aqui!
Sou puxado pelos meus companheiros para um beco onde caio aterrado. Só consigo balbuciar:
- Quem?...
Ao que me respondem, desplicentemente:
- Ghôles, Brucolaques, tu acabas por te habituar.
Perco os sentidos, o meu corpo não aguenta o derradeiro esforço, mas sinto-me estranhamente protegido por aquele dueto deveras singular.



Caminho absorto por um campo verde viçoso cravado pelas mais belas flores. São azuis, amarelas, vermelhas, rosas, laranjas, de todas as cores e matizes do arco-íris.
Percorro o trilho da minha imaginação por um mundo inofensivo onde me sinto seguro e realizado, sem preocupações.
Só eu, o sol e o horizonte, tudo enquadrado por uma tela verde marejada de pintas, que como pedras preciosas brilham à luz através dos reflexos das gotas de orvalho matinal.
O meu corpo é leve, não tenho roupas, estou livre do pecado original. A vergonha não tem lugar aqui.
O meu espírito flui livre, espacial, etéreo. Quase que flutuo, não sinto o chão sob os meus pés.
Nada parece importar, e é esta indulgente capacidade de me sentir confortável comigo mesmo que me aquece. Não sei se deve à idilica paisagem que me rodeia, se à falta de contacto com outro ser vivo animado de uma consciência.
A vida sorri simples, sem nada que me possa influenciar, e assim sou, somente eu, percorrendo o meu subconsciente através dos meu próprios passos.
É o paraíso, ou pelo menos assim parece.
É tudo o que me prometeram se seguisse a fé do Senhor, se fosse virtuoso. Ser bom e essas coisas...
Não sei até que ponto isso deva ser ensinado, ou então inato. De qualquer modo acho que cada um tem um lado bom e um outro maquiavélico, para não dizer mau. É a capacidade de lidar com as mais diversas situções que nos define e distingue como seres humanos.
Fui ensinado a fazer sempre o bem, mas não quer dizer que não possa praticar actos negativos, como fruto dos meus instintos mais básicos. Por vezes é difícil diferenciar o certo do errado. As escrituras só nos mostram metáforas e uma mão cheia de conceitos mais ou menos abstractos a seguir.
A palavra chave é consciência.
Se eu pensar existo, dirá Descartes. Ou seja, se me ausentar mentalmente deixo de ser. É uma perspectiva engraçada...
O meu corpo começa a desvanecer em fumos brancos de algodão e negros de enxofre.
As flores à minha volta começam a crescer, grotescas.
Envolvem-se em actos libidinosos entre si.
Fecho os olhos, sinto-me constrangido com tal luxúria.
Mas, com a mesma rapidez com que cerrei os olhos, abro-os, curioso.
É um frenesim sexual, as gotas de orvalho parecem agora pingos de suor meticulosamente jorrando dos corpos exaustos sem o saber. Os caules contorcem-se e roçam-se, afagando as pétalas com gemidos lancinantes e confusos que cortam o ar. Tudo gera à volta do acto sexual, como uma orgia vegetal incontrolável e infecciosa que se propaga até ao fim da terra. O mundo submerge em caos.
A um ritmo acelerado vejo os corpos florais a definharem à medida que atingem o êxtase e que os seus rebentos nascem instantaneamente e caem dos céus.
Hirtos, penetram o ventre da terra, abrem-se e começam a crescer desmesuradamente.
As suas pétalas negras exibem dentes também negros que corroem a morte. Os seus progenitores jazem no chão, moribundos, quando são deglutidos um a um.
A fome obriga-os a comer tudo o que se encontra ao seu redor, até a erva fresca.
O solo é despojado de toda a sua beleza, e está agora árido e negro, como que queimado.
Levadas pela fome, as flores recém-nascidas forçam o movimento arrastando as suas raízes para a superfície.
Morrem e caem, decompondo-se instantaneamente.
São somente fertilizante.
Uma luz branca, forte e homogénea cai e desaparece como um clarão de trovoada.
A vasta aridez pejada de resíduos orgânicos regenera-se num instante.
Novamente tudo é verde...



Na rua direita, um mar de corpos, como escolhos nas ondas de poeira varridas pela brisa quente da noite e pelos pés dos fugitivos. São membros decepados, corpos trucidados, uma miríade de sombras enevoadas pelo sangue jorrado.
Riscos nas paredes são pinceladas vermelhas, janelas desvirginadas por um silêncio estuprador, morto e já putrefacto.
O sol começa a erguer-se no horizonte matutino, abre os seus braços, envolvendo o mundo com os seus raios quentes.
A terra é agora um jogo de sólidos absurdamente puros sob a luz solar que se distribui de uma forma heterogéneas pelos contornos.
As criaturas diligentes na sua razia presenciam o nascimento do astro rei demasiado absortas para sequer se aperceberem.
Desprendem-se do mundo, desvanecem-se em cinzas, numa nuvem uniforme e informe; caindo elas mesmas num jogo vicioso e ancestral, à medida que aterram sobre os restos mortais que já calcetam a rua.



Enquanto abro os olhos sobrevivo ao horror mórbido. Uma réstia de esperança ecoa no meu coração. Uma linda rapariga em branco surge angelical como um beijo e leve como uma pluma. Sorri-me ao longe. O sol abraça-a e protege-a, com uma cumplicidade arrebatadora.
Vem acompanhar as almas, consolá-las e velar por elas. è uma escada para o céu, simbolo do amor infinito e da divina complacência.
É embaraçoso. Enrubesço. Nunca uma mulher tinha olhado para mim destapado pelo hábito. Sinto-me lisonjeado. Baixo os olhos envergonhado. Tento recompor-me. É tudo tão novo para mim.
Levanto os olhos. Ela olha de novo para mim, sorri, desta feita de um modo tímido, e acena-me uma adeus esguio e elegante.
O seu corpo é agora luz, funde-se no sol à medida que um denso nevoeiro cobre a terra, abafando o mundo.