19 de maio de 2008

Azul Celeste e Vermelho Morte (Santa Isabel)

Sento-me sentado e sou assim
Escolho-me e escondo o mim
Deito-me deitado a contemplar
Vejo o tecto a me espelhar
É vazio e vácuo, é triste e feliz
É uma confusão que eu quis
Deixo a criação para o pensamento
E a agitação para o momento
E quando a monotonia se instala
O terror aceita e faz a mala
Deixo-me aqui, não sei onde
Procuro-me, nada se esconde
Excito-me na realidade crua
Enquanto te imagino nua
Demasiada saturação
Corre debaixo da ponte
São águas, nada são
E tudo anda a monte
Isto é sensação corrida
E plastificação espremida
São rosas senhor
Vermelho é a sua cor
É determinada a vontade
Limitada a verdade
Sou o gesto que decorre
A gota de sangue que escorre
Na vermelha praça
E cai no cristal da taça
Que alguém há-de beber
Para não morrer
Sou fonte de vida e vampirismo
Destruo e crio o feudalismo
Sim, são só rosas senhor
Com elas revelo o meu amor
E de homem que sou
Vivo da felicidade de quem me amou
Sou somente um vampiro
Que morre a cada suspiro
Dirijo um cemitério de raparigas
Algumas delas só amigas
Outras amantes
Mortas momentos antes
De um momento de glória
O momento antes da história
É vermelho o meu mostruário
São vermelhos os seus sudários
Nada é morte, tudo é criação
Tudo é sorte, tudo é rotação
Como roda esta nave celeste
Que nos põe a teste
Azul celeste...

18 de maio de 2008


O prédio das p* mortas

É de tarde. Fim da tarde. Uma chuvada caiu à pouco tempo e inundou a rua de lama.
As pessoas caminham e transportam a sujidade mundana até às suas dependências mais íntimas através dos seus pés, arrastados, movimentos mecânicos, pesados e amorfos.
As obras de pavimentação ainda estão incompletas.
Nas lojas, por entre o branco das fachadas de pedra caiada, emerge alguma luz, difusa. O crepúsculo avermelhado atinge o chão e reflecte-se nas poças de água e na lama criando reflexos laranja nas paredes.
Um prédio, devoluto, aparece-me numa encruzilhada de ruas, por entre a massa disforme da cidade
É alto, tem quatro andares, e o estuque das fachadas está estalado e desbotado, as janelas tem os vidros quebrados, as portas estão escancaradas.
É um ser moribundo, à espera de exalar o seu último suspiro, e aí sim, desmoronar-se como um castelo de cartas sob o peso da imundice do mundo.
Entro acompanhado, o corrimão da escada de acesso aos pisos superiores, de madeira, está comido, e as escadas em si não parecem muito seguras.
A cada passo um gemido, um prazer quase masoquista que atravessa a estrutura do velho edifício e que nos abraça e nos transporta para qualquer hiato de sofrimento de anos passados.
Ao meu lado, um velho amigo, Hermes, sube com passos enérgicos, sem ligar muito à decadência daquele que nos alberga. Um sorriso nos lábios, a proximidade de um pouco de prazer tolhia-lhe o pensamento.

Ao fim de vários lanços, Hermes sai da velha caixa de escadas e dirige-se a uma porta carcomida.
Bate à porta.
A princípio ninguém responde. Estranho… Do interior soltam-se gemidos de um prazer tão consonante com a amargura do local que me arrepiam a espinha.
Passados alguns momentos, Hermes bate novamente à porta, desta vez mais vigorosamente, até culminar num pontapé que a escancara.
Abre-se um corredor à nossa frente, escuro. É somente iluminado por uma janela, vermelha, cor de fogo da qual se destaca uma sombra de algo sentado, parece uma mulher. Dois metros e meio, mas também posso estar enganado quanto á altura dela.
Uma mulher? Um monstro, sem dúvida. Pela sua sombra adivinho um animal gigante e enfurecido…
Reparando na minha expressão espantada e inquisitória, Hermes diz:
- Aquela, vês, ali ao fundo, sim eu sei que estás a olhar para ela… É a Madame Iron Jaws.
Eu, assinto imediatamente com a cabeça, ainda meio estupefacto.
Hermes continua:
- É assustadora, não?
- Sim…
Neste momento, para ser sincero já não sei onde me vim meter. Isto é uma casa da má vida, ou um um espectáculo de anormais?
Uma das portas laterais abre-se.
O cheiro a sexo inunda o corredor como o cheiro de pão quente invade as ruas de manhã. Um cheiro a mijo e almíscar enoja-me.
Uma prostituta atravessa o corredor, olha-nos de cima a baixo, diz:
- Os senhores vão ter de esperar. Há gente na fila. De qualquer modo tem de pagar adiantado.
Leva-nos, nua, até uma espécie de sala de espera com uma mesa de madeira carcomida por bichos, sobre um tapete oriental já bastante coçado. De um dos lados uma balcão com uma pia em frente a uma janela e duas portas de acesso aos quartos paralelos ao longo do corredor. Deduzo que este espaço tenha sido uma cozinha em tempos idos
- Deixem aqui o dinheiro e se quiserem esperem por aí. Se não, bem podem ir dar uma volta que o serviço ainda não se despacha já. Para aí daqui a uma meia hora…
Eu e o Hermes deixamos as notas numa gaveta, que a mulher logo fechou às chaves.
Saímos.
Descemos as escadas e fomos á estalajem do outro lado da rua.
O edifício ainda parecia mais lúgubre à medida que o sol se punha.

O tempo passa lento, esperamos enquanto bebericamos algo. Eu comento:
    - Pela amostra, isto não vai ser grande coisa. A gaja era muito feia.
    Surpreendo-me com a minha linguagem, especialmente pelo facto de ser
    tão espontânea e visceral, sem qualquer réstia de falsa moralidade. Mas o que mais me surpreende é concluir que já desenvolvi, ou pelo menos comecei a expor um gosto por mulheres que já se coaduna com o desprezo de algumas pelas suas características físicas que de certo não me agradam.
- Pois, e podes ter a certeza que as outras também são… Mas olha, é o que há…- diz Hermes resignado.
Eu lembro-me do velho Hermes. Era um jovem quando primeiramente me comecei a conhecer, na flor da idade, não o caco podre que agora é. Sorria com os dentes todos e com uma candura católica de bondade humana.
A sua cara, marcada pelo sol, exibe rugas e cicatrizes. No entanto, o velho Hermes ainda exibe aquele riso jovem de outrora mas já sem dentes e nos olhos um brilho já acastanhado pela velhice, mas que denota ainda um gosto pela vida.
Abandonou o convento, descontente com o rumo da igreja.
Fugiu a sete pés do gosto pela carnificina do Santo Ofício, revoltado com tal frieza e instinto assassino em nome de algo em que começou a deixar de acreditar.
Resoluto, deixou o mosteiro, apesar de todas as súplicas do seu superior e do meu choro convulso de criança prestes a ficar desamparada. Tinha sido a maior referência na minha educação. Era o pai que nunca tive.
Com os anos, o abade, bonacheirão e conformado com a sua velhice, apesar de dissonante a sua opinião em relação à política dominicana anti semita ( que nunca revelou, com medo da sua própria morte), acabou por se tornar uma espécie de avô, zelando pela educação do seu noviço preferido, segundo as orientações das Escrituras, procurando, no entanto, formar um homem, não um padre.
È com um certo saudosismo que olho agora para Hermes, o meu grande amigo, o meu pai espiritual, o homem que abandonou a vida monacal para experimentar o mundo e melhor o compreender, se calhar a maior influência para a minha viagem...
Hermes agora é um ser humano que conhece a vida, a boa e a má. Mudou como homem, mas eu ainda vejo a sua aura calorosa, apesar dos trejeitos grossos e linguagem cheia de palavrões.
Hermes levanta-se e diz-me em jeito jocoso:
- Pá, vamos lá. A esta hora as gajas já não sabem o que fazer ao pito.
Levanto-me um pouco renitente, já não sei bem se quero ir. Quer dizer, entre aquilo e nada, não sei o que prefiro. Para primeira vez...
Atravessamos a rua, agora mais movimentada. Hora de ir ao mercado, as pessoas correm as tabernas e as bancas à procura do pão que vão levar para casa. Um mar de formigas obreiras incansáveis no seu descanso. Uma existência alienada e triste, um movimento desesperado e inócuo.
Entramos outra vez no prédio, a boca escancarada pelas portas batidas por ventos idos anuncia o cancro estrutural.
Com esta luz, os seus reflexos sangue, o prédio assume ainda mais uma postura moribunda e derrotista.
À porta, um sujeito baixo mas bem parecido, num fato burguês novo, sorrin para nós, e comenta:
- Então, vão lá para cima? – sorri; Vão ter um pouco de acção?
Noto um tom de desdém, uma raiva contida, talvez um sentido pudico demasiado apurado. Olha-nos de cima da sua fatiota e para cima, na direcção dos nossos olhos. Não evita um esgar.
Não entendo.
Subimos as escadas, mais uma vez o solo treme e geme.
A primeira impressão que tive parece-me agora errada. São gemidos de estertor. É a morte que se anuncia.
Encontramos a porta escancarada e o vulto à janela desapareceu. A luz do sol ilumina, sanguínea, o corredor.
Todas as portas estão abertas. Nenhuma luz sai de dentro delas.
Um silêncio só quebrado por passos difusos e leves.
Entramos na cozinha, a única divisão iluminada…
Vejo esguichos de sangue na parede, um cheiro a cadáver a tornar-se intenso e agora gritos ao longe, seguidos por gemidos de satisfação no quarto ao lado.
Hermes, perdeu o sangue do corpo, está ao meu lado imóvel e assustado, o jovem de outrora está perdido, o medo congela-o. Eu digo-lhe:
- Hermes, vamos embora, não parece que hoje seja o dia indicado para vir aqui…
Hermes não responde.
Eu reparo numa chave em cima da mesa.
Penso: ao menos fico com o dinheiro de volta. Verifico a chave e experimento-a na gaveta. Serve, tiro o dinheiro todo.
A porta fecha-se com a corrente de ar atrás de nós. A mesma corrente de ar que faz apagar os castiçais na parede.
O Hermes treme que nem varas verdes.
Uma das portas laterais que dá acesso aos quartos abre-se e de dentro sai um homem com um braço na mão que trinca vorazmente.
Dirige-se à pia da cozinha.
Um corpo pequeno e agonizante assoma da bacia.
Um recém-nascido, negro de tanta pancada, com uma respiração pesada e expirante encontra ainda forças para um último gemido.
A boca do homem que o segura aproxima-se e ele trinca a carne tenra do bebé. As mãozinhas rechonchudas são chupadas como se fossem patas de galinha cozinhadas em vapor.
Num acesso de fúria o indivíduo atira a carne recém morta contra a parede vindo esborrachar-se na parede em que eu e Hermes nos tínhamos escondido à guarda da penumbra.
O sujeito abre a porta que se encontra do outro lado da divisão e segue em frente.
Hermes sussurra:
- Eu vou-me embora, e é já…
Abriu a porta e escapuliu-se.
Eu, cheio de medo, segui-o.
No corredor uma visão infernal esperava-nos e enquanto o percorremos um vómito pungente assoma à minha garganta.
Corpos mutilados espalham-se agora por todo o lado. Braços, pernas, cabeças distribuídos com um requinte de malvadez pelo espaço.
Descemos as escadas a correr, enojados.
A meio do caminho descendente encontramos dois homens a subir. Interpelam-nos:
- Então, que tal as meninas? Hã? O material é bom?
Nós, mudos, não respondemos, não mais que com um grunhido.
Eles, olham-se, meio aparvalhados e perguntam:
- Estes tipos não estão bem, parece que viram o Diabo.
Nós não respondemos, uma agonia emergente apodera-se de nós. Hermes estava branco. Empurra-mo-los, e continuamos a descer.
À saída, a mulher gigantesca ocupava metade da porta, enquanto que o janota que tínhamos visto ao subir estava a seu lado.
Era a Madame Iron Jaws e o seu marido, que nos esperavam com um sorriso cínico nos lábios. O nome é agora evidente, o seu maxilar sobre desenvolvido, mesmo para um corpo enorme, eram resultado de uma prótese de metal que se revelava somente no encaixe com o crânio
- Então, gostaram do presente? Estava a vosso gosto?
Então eu percebi tudo. Nada tinha sido fonte do acaso. Era um ardil sádico e macabro elaborado para nos incriminar numa espécie de homicídio ritual. Se mais nada resulta, se o inferno não nos apanha, pelo menos a justiça dos homens fará o trabalho sujo.
A matrona aproxima-se e observa:
- Que dois franganitos…, acho que o trabalho foi bem feito. Estão arrumados – e continua – não sei como pôde ter sido tão difícil apanhar este gajo insignificante.
Eu e Hermes, não replicamos.
A única coisa que o nosso corpo e mente conseguiram acordar foi em fugir, desaparecer.
Demos dois passos atrás, viramos as costas. Só um milagre me poderia salvar.
Ao afastar-me do edifício ouvi um barulho estrondoso.
O prédio ruiu.
Levou consigo a Madame Iron Jaws, o seu marido, o seu assassino canibal; e todos levaram o pesadelo.
As provas contra mim, as testemunhas desaparecem, resta um amontoado de entulho e a dignidade mortuária de um edifício no seu pó.
A rua está molhada, a lama acumula-se e é levada pelos pés das pessoas que assim transportam a sujidade do mundo para as suas vidas.
Um prédio morto, uma história por contar, o terror dos últimos momentos parece agora um pesadelo, algo que só eu e o Hermes conhecemos. Nada resta a não ser o nojo e a vontade de vomitar.

2 de maio de 2008

O deserto

Cítaras a tocar
Encantam o ar
Amarelo o matiz
A cor do deserto
Azul feliz
A cor do céu desperto
A areia em turbilhão
Bóia na minha mão
E em convalescença
O sol arde descrença
São fúnebres os ruídos
Ecos de tempos idos
O som de melodias
Esquecidas nos dias
Que se afundaram
Na areias do mundo
São memórias passadas
Num buraco sem fundo
Decresce a luminosidade
Despe-se a realidade
E nos seus mantos
De matizes brancos
Veste-se a lua
Transparente vai nua
A sua luz é tua
No firmamento
Brilham pontos de fogo
E num momento
Desesperam em sufoco
Sorriem e voltam a brilhar
São os teus olhos
Que me querem consolar
E na palma da tua mão
Vejo batendo em solidão
O pulsar da imensidão
Em suspiros de ventania
São murmúrios de outro dia
Que se anuncia
E na claridade
Vejo a verdade
Da beleza escondida
Como se fosse retida
Por um pudor
Deveras ameaçador
O mundo de imaginação
Sustêm a respiração
Porque no deserto
E nas suas dunas
Vê um livro aberto
E suas runas
E no teu corpo
Ainda meio absorto
Encontra a serenidade
Que lhe dá paz

(para a Márcia)